Antes de ter nome, já existia

Por Karen Cardial

Há um tipo de exaustão que se repete sem alarde, mas que vai ocupando o corpo, o olhar, a presença. Quando não há espaço para o processo, só restam os rótulos. Ou o silêncio.

É nesse intervalo, entre o que não se nomeia e o que já compromete a aprendizagem, que muitos estudantes permanecem. Tentam acompanhar, insistem, falham, ajustam o comportamento para não chamar atenção. E seguem invisíveis. Quando o reconhecimento depende de um diagnóstico, o cotidiano se torna um exercício de sobrevivência escolar.

Para estudantes com Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), o percurso até o reconhecimento costuma ser longo. Roberta Rossi, doutora e mestre em Educação, psicóloga, pedagoga e neuropsicóloga com mais de 20 anos de experiência em educação e saúde mental, alerta que os sintomas do TDAH não estão ligados exclusivamente à escola, e que qualquer observação isolada precisa ser interpretada com cautela. “Pode não se tratar de um transtorno, mas de uma resposta adaptativa da criança a um contexto altamente exigente ou pouco acolhedor. Classificar de TDAH uma criança que não consegue se concentrar em uma rotina escolar rígida sem antes analisar o todo é precipitado”, afirma.

“A escuta ativa e a adaptação do ensino fazem parte do fazer pedagógico, e isso não depende de laudo.” (Roberta Rossi)

Quando o reconhecimento depende de um diagnóstico, tudo que vem antes corre o risco de ser ignorado.

Na escola, a dificuldade pode se manifestar em silêncio ou em excesso. Mas entre um e outro, muitas vezes o que falta é o olhar, não o diagnóstico. O papel do professor não é definir o transtorno, mas reconhecer quando algo interfere de forma persistente na aprendizagem. Isso exige escuta qualificada, registro atento e comunicação constante com a família e com a equipe pedagógica. “A escola não tem o papel de diagnosticar, mas de observar, registrar e compartilhar suas percepções com a família. A desatenção pode sim ser uma forma de sobrevivência psíquica, e isso exige escuta, não rótulo”, defende a especialista.

Para Roberta Rossi, o que mais confunde não é o que o TDAH é, mas o que ele não é. A escola costuma enxergar TDAH demais em estudantes muito ativos, mas ignora sinais relevantes em perfis menos disruptivos. O problema, segundo ela, é que, ao aguardar um laudo para agir, a escola transfere sua responsabilidade pedagógica para fora. “A ausência de um laudo não pode justificar a ausência de ação. Adaptar a prática, acolher as necessidades, escutar e propor caminhos faz parte do fazer pedagógico. E isso não depende de diagnóstico, depende de compromisso com a aprendizagem”, aponta.

“A desatenção pode sim ser uma forma de sobrevivência psíquica, e isso exige escuta, não rótulo.” (Roberta Rossi)

Esse compromisso também exige um exame cuidadoso do próprio modelo escolar. Provas extensas, avaliações padronizadas, rotinas rígidas e excesso de atividades fragmentadas impactam diretamente os estudantes com TDAH. Mas não só a eles. “Tarefas extensas, provas longas, rotinas inflexíveis e uma sucessão de estímulos com exigência de resposta imediata geram sobrecarga e esvaziam o tempo necessário à elaboração e ao pensamento criativo”, diz Roberta.

A especialista relata que há professores que têm promovido mudanças significativas: dividem tarefas em etapas, ampliam as formas de expressão, valorizam o esforço processual e criam espaços de construção coletiva. Essas ações, segundo ela, são mais do que ajustes, são expressões de uma pedagogia que escuta. “Educar exige tempo, presença e compromisso com o sujeito que aprende. E isso é insubstituível.”

Entre os estudantes, muitas falas revelam esforço, dor e cansaço. Alguns dizem que se sentem “burros”, que todo mundo avança mais rápido que eles, que têm “confusão na cabeça”. Outros se culpam por procrastinar e não conseguir entregar o que se espera, como se isso fosse sinal de preguiça. Mas para Roberta, o comportamento pode ser uma forma de defesa emocional. “Quando a tentativa constante não gera êxito, o cérebro passa a associar aquela tarefa ao sofrimento e evita o engajamento. Não é comodismo, é defesa emocional”, explica.

Esse pedido de ajuda, segundo ela, nem sempre vem em forma de agitação. Pode estar no silêncio de quem não pergunta, não quer errar, tenta se esconder. A escola, por vezes, segue adiante sem perceber. “Esses sinais estão no corpo, no comportamento, no silêncio e no excesso. Basta estar presente para ver.”

"A ausência de um laudo não pode justificar a ausência de ação.” (Roberta Rossi)

Rossi considera que um dos principais deslocamentos necessários está no tipo de pergunta que o professor se faz. Em vez de buscar respostas prontas, ele pode questionar se o planejamento proposto está claro, se o ritmo da aula permite a elaboração, se ele mesmo conseguiria realizar a tarefa nas mesmas condições. “Essas perguntas não têm respostas automáticas e, justamente por isso, são pedagógicas. Elas recolocam o professor no centro do processo, não como quem controla, mas como quem escuta, medeia e transforma.”

A escola não pode esperar que profissionais da saúde resolvam sozinhos o que exige uma resposta pedagógica.

Essas perguntas abrem espaço para um tipo de prática mais consciente, menos automatizada e mais próxima das reais possibilidades de cada estudante. Elas impedem que a dificuldade vire apenas um dado ou uma reclamação. Tornam-se convites para uma escuta pedagógica, que valoriza o processo e entende que ensinar não é ajustar o estudante ao plano, mas ajustar o plano ao estudante.

No fim, o TDAH não revela apenas um diagnóstico, mas um conflito entre o modelo escolar e as formas de aprender que não cabem na planilha. “Criatividade, flexibilidade, originalidade de pensamento, capacidade de se reconstruir frente ao erro – tudo isso também é aprender. O professor pode ser a virada de chave na vida de um estudante, e isso não é pouco”, finaliza.