
Por Karen Cardial
Foi durante a exibição da peça “O Cortiço” que a professora Rosana Macarroni notou as estudantes emocionadas, envolvidas pelo que viam em cena. “Elas não sentem a dor na pele, pois estão ali, sentadas no teatro e são de uma classe social privilegiada, mas quando se colocam no lugar do outro — possibilidade que a obra literária nos dá”, conta. O espetáculo, que denuncia a exploração e as péssimas condições de vida nos cortiços cariocas, faz parte do trabalho contínuo da professora com estudantes do Ensino Médio, que promove reflexões sobre desigualdade, empatia e preconceito. É uma experiência que mobiliza mesmo quem, muitas vezes, não se dá conta da exclusão que atravessa o cotidiano escolar.
Rosana, que leciona Português, Redação e Literatura há 28 anos, relembra a trajetória de um estudante negro bolsista que passou anos isolado dos colegas, sem conseguir se enturmar nem participar das atividades em grupo. A situação econômica e o racismo estrutural, muitas vezes sutil, o mantinham à margem. Anos depois, ele voltou à escola para contar, orgulhoso, que estava na faculdade. “Trabalhamos o racismo em sala de aula e vencemos o preconceito; de alguma forma ele se afeiçoou ao grupo e seguiu sua vida acadêmica”, afirma.

O que se revela no palco também ecoa nos bastidores da escola, como mostra o relato da escritora, arte-educadora e cordelista Madu Costa. Convidada para conversar com estudantes de uma escola sobre seus livros — adquiridos pela própria coordenadora como parte de um projeto antirracista —, ela teve sua presença vetada pela direção. “Foi uma situação extremamente desconfortável. A coordenadora era negra, como eu, e teve sua proposta boicotada. Era uma promoção da literatura negra, que foi interrompida por preconceito claro, ainda que velado”, lembra.
Para Madu, a educação antirracista só funciona quando envolve todos os profissionais da escola. “Não basta uma ação isolada. Toda a escola educa: professores, coordenadores, auxiliares, faxineiros, cantineiros. Que ninguém fique de fora desse processo, para que a educação antirracista possa funcionar”.

“Quando a comunidade escolar inteira participa, a educação antirracista deixa de ser um projeto isolado e ganha força no cotidiano.” (Madu Costa)
Essa compreensão atravessa também a literatura que chega aos estudantes. A ausência de personagens negras como protagonistas ou a representação estereotipada dessas figuras ainda é regra. “A escola tem o dever de mostrar aos estudantes a presença da criança negra, indígena e asiática como protagonista das suas histórias. Isso não é privilégio da branquitude”, afirma Madu, autora premiada com livros publicados no Brasil e no exterior.
A escritora defende que autores e ilustradores negros são fundamentais na produção dessas obras porque carregam referências culturais e estéticas que não podem ser improvisadas. “Nós conhecemos os traços da nossa ancestralidade, o modo como as crianças negras se movem, se expressam, os gestos, os cabelos, os sorrisos. O ilustrador negro tem essa sensibilidade — não reforça estereótipos, não exagera traços, porque vê beleza onde muitos aprenderam a enxergar defeito. Isso não é preciosismo. É respeito, é legitimidade. Porque a minha história só pode ser contada por mim”, afirma.
A literatura brasileira historicamente reproduziu imagens estereotipadas da população negra, criadas por autores não negros. No Romantismo, por exemplo, personagens negras apareciam quase sempre em papéis subalternos. Como reação, autores e autoras negras vêm reescrevendo essas narrativas, ocupando espaços e confrontando visões limitadas, que ainda ecoam nas relações raciais de hoje.

“A representação de crianças negras, indígenas e asiáticas como protagonistas nas histórias ainda é exceção — e a escola tem papel decisivo na mudança desse cenário.” (Madu Costa)
O autor e ilustrador Mauricio Negro, embora não negro, é uma das referências quando o tema é a representação de povos originários e afrodescendentes na literatura. Ele defende que não deve haver oposição entre projetos de autoria negra e aqueles de temática negra assinados por autores não negros — desde que o protagonismo dos grupos representados seja respeitado. “Não podemos criar barreiras, isso não ajuda em nada. Mas, ainda assim, sou muito cuidadoso na produção dos livros e projetos para que haja o protagonismo das pessoas que têm o seu lugar de fala”, afirma.
Com olhar atento ao papel das editoras nesse processo, ele acrescenta: “Gostaria que as editoras tivessem ainda mais apuro na interlocução com instituições públicas e privadas, para que esses projetos ganhem asas.”
O poeta e ensaísta Edimilson de Almeida Pereira acredita que o caminho da educação antirracista é contínuo — e exige da escola um enfrentamento cotidiano, que passa também pela linguagem. Expressões como “denegrir”, “a coisa tá preta”, “fome negra”, “mulata”, entre outras, precisam ser revistas, bem como a escolha de autores, obras e representações. “Assim como o processo de exclusão foi ensinado, a inclusão também pode ser aprendida, através do reconhecimento de elementos culturais decisivos para nossa identidade nacional”, aponta.

“Hábitos naturalizados, expressões corriqueiras e escolhas aparentemente neutras também perpetuam a exclusão — e precisam ser revistos. ” (Edimilson de Almeida Pereira)
É na pluralidade de vozes, histórias e referências que a escola pode sustentar uma educação verdadeiramente transformadora. Para Edimilson de Almeida Pereira, educar, hoje, é reconhecer a complexidade do país que somos e abrir espaço para perguntas que permaneçam vivas, capazes de alimentar o debate e sustentar a escuta. Mesmo quando os caminhos forem tortuosos, é no diálogo que podemos encontrar aproximações possíveis: “Educar hoje é, mais do que nunca, lidar com situações que não têm uma conclusão. Essa é a ideia de um país aberto, que se constitui no conflito, nas arestas, mas que não impede a articulação de diálogos e a criação de consensos mínimos”, termina.
A educação antirracista não é um destino, mas um caminho que se constrói todos os dias — na escuta, na revisão de práticas e na escolha consciente de cada palavra.