Entrevista Especial Dia do Professor

Por Karen Cardial

Há professores que ensinam por escolha. Outros, porque ensinar faz parte de quem são. Briane é assim. Descobriu cedo o que a escola desperta: movimento, criação, curiosidade. Nunca quis repetir modelos, preferiu experimentar. Fez da sala de aula um laboratório de escuta e invenção, onde cada criança é também autora do caminho. Gosta do que dá trabalho, do que obriga a pensar, do que a faz começar de novo. Para ela, ser professora é isso: estudar, brincar, errar, acertar, permanecer em transformação. É desse movimento, cotidiano e imperfeito, que nasce a professora que ela escolheu continuar sendo, alguém que ensina enquanto aprende e que acredita, sem romantismo, que a escola ainda é o melhor lugar para transformar o mundo.

1. O que fez você escolher a docência e o que a faz permanecer nela?

Desde pequena, eu convivia com a escola por causa da minha tia, que era professora e diretora. Eu a acompanhava em reuniões, brincava com os materiais, ficava fascinada com aquele universo. Fui uma criança cercada por livros, jogos e experimentações. Muitas vezes, eu mesma era a “cobaia” dos recursos pedagógicos dela.

Mais tarde, quando chegou o momento de escolher o ensino médio, uma greve acabou mudando meu destino. Durante aquele período, percebi que o magistério era o meu lugar. E foi ao entrar nessa escola que tudo fez sentido: reencontrei o encantamento que eu tinha na infância, redescobri o prazer de criar, estudar, inventar.

A docência me conquistou porque é movimento. Ela exige que a gente se transforme o tempo todo, e isso combina comigo. Não saberia viver de outro modo. Cada turma me faz começar de novo, rever caminhos, experimentar. É cansativo, mas é também o que me mantém viva. Enquanto meus olhos brilharem, os olhos das crianças também vão brilhar. E é por isso que continuo.

“Enquanto os meus olhos brilharem, os olhos das crianças também vão brilhar.” (Briane Guterres)

2. Você é conhecida por desenvolver projetos inovadores que envolvem toda a comunidade escolar. Pode nos contar um exemplo marcante e o que ele transformou na escola ou nos estudantes?

Eu fico até tímida quando ouço isso, mas acho que inovar, para mim, é envolver todo mundo: colegas, estudantes e famílias. Meus projetos quase sempre nascem da literatura. É com base em um livro que eu começo a pensar: o que quero provocar? Que habilidades e competências posso desenvolver a partir daqui?

Um exemplo recente foi o trabalho com fluência leitora. Uso microfones simples e transformo as leituras em um jogo. As crianças se escutam, leem, recontam, e a alfabetização acontece entre risadas e descobertas. A brincadeira vai crescendo junto com elas: as fichas de leitura viram livros, os livros viram histórias compartilhadas.

Outro projeto marcante foi a Semana “Irun Ti o Dun” (Semana do Cabelo Alegre), em iorubá. Nela, trabalhamos identidade e cultura afro-brasileira com a Educação Infantil. As crianças criaram penteados com elementos da natureza e aprenderam palavras da língua iorubá. O mais bonito foi ver como o tema ficou vivo: semanas depois, quando viam alguém com cabelo afro, diziam: “ela é da nossa Semana do Cabelo Alegre”.

Mais recentemente, criamos o “Trem Trilíngue”, com o apoio das professoras de Inglês e de Artes. Cada família era um vagão e, juntas, construímos um trem que unia português, inglês e italiano: uma homenagem aos 150 anos da imigração italiana em Bento Gonçalves. O resultado foi emocionante: as crianças aprenderam palavras em três idiomas e sentiram orgulho das próprias origens.

Esses projetos mostram que nada acontece sozinho. Tudo nasce da troca entre professores, estudantes e comunidade. E quando a escola se une em torno de um propósito, ela vira um espaço vivo, onde aprender é também criar e pertencer.

3. O que mais desafia e o que mais motiva você, hoje, na profissão?

O maior desafio é lidar com um mundo que fala muito sobre educação, mas nem sempre a compreende. Vivemos um tempo em que qualquer pessoa opina sobre o trabalho docente, mesmo sem conhecer os processos de aprendizagem, a BNCC ou o que acontece dentro de uma sala de aula. É como se todos se sentissem juízes da educação.

Essa exposição constante, somada às redes sociais e à velocidade das informações, cria ruídos, desgasta e, muitas vezes, desvaloriza o professor. Mas, apesar disso, sigo acreditando na profissão e em tudo o que ela representa.

O que me motiva é simples: o brilho nos olhos das crianças. É ver o aprendizado acontecer, é receber uma cartinha com “profe, eu te amo”, é saber que, de algum modo, participei da formação de alguém. Isso renova minhas forças todos os dias.

Ensinar é estar presente e permanecer presente mesmo quando tudo ao redor parece querer nos afastar desse propósito. Enquanto eu tiver esperança e acreditar que o que faço transforma, continuarei ali, com os olhos e o coração inteiros na sala de aula.

4. Como você enxerga a escola pública hoje, especialmente depois da pandemia e de tantas mudanças sociais? O que ela ainda representa na vida das famílias e dos estudantes?

A escola continua sendo o lugar de encontros, de convivência e de descobertas. É onde as crianças aprendem a viver com os outros, constroem vínculos, ampliam o olhar sobre o mundo e se preparam para a vida adulta. Ela ainda é, sem dúvida, um porto seguro, especialmente para muitas famílias que encontram na escola acolhimento e referência.

A pandemia, no entanto, mexeu profundamente com essa relação. As tecnologias ajudaram, mas também trouxeram o imediatismo. Em alguns momentos, perdemos o tempo das trocas, da maturação, da escuta. Algumas famílias voltaram achando que a escola havia mudado de
essência, e não mudou. Ela segue sendo o espaço do afeto, do tempo, da construção coletiva.

Também percebo que muitos professores acabaram se afastando de práticas simples e valiosas, como a leitura em voz alta, o uso do livro físico, o brincar. São coisas que precisam voltar, porque o concreto e o humano ainda são indispensáveis no aprendizado.

Na minha escola, trabalhamos muito o envolvimento das famílias. Todos os estudantes, do primeiro ao nono ano, têm tarefas de casa diárias, e na Educação Infantil isso acontece uma vez por semana. Isso ajuda as famílias a entenderem o processo de aprendizagem dos filhos e aproxima a comunidade da escola.

Mesmo com todos os desafios, eu acredito na escola pública. Ela é o caminho. O melhor caminho para formar seres humanos inteiros, críticos e sensíveis.

5. No seu cotidiano, o que significa “ensinar”? É mais planejar aulas ou estar presente na vida dos estudantes?

Ensinar, para mim, é estar presente na vida dos estudantes. Mas isso não significa abrir mão do planejamento, pelo contrário. Eu preciso ter muito clara a minha intencionalidade pedagógica: quando canto uma música na Educação Infantil, por exemplo, sei exatamente quais fonemas, rimas ou aliterações estou trabalhando.

O planejamento é o que me dá segurança para estar inteira com a turma. Ele me orienta, mas é o vínculo que dá sentido a tudo. É o encantamento nos meus olhos que desperta o encantamento nos olhos das crianças. Quando isso acontece, o aprendizado se espalha pela sala e chega até as famílias, porque os estudantes voltam pra casa contando o que viveram.

Na alfabetização, esse estar presente ganha outros contornos: é o momento da leitura diária, das leituras incidentais, do livro que o ajudante do dia escolhe, das conquistas individuais e das descobertas coletivas. É ali, nesses instantes simples, que eu percebo o verdadeiro sentido de ensinar, estar com eles e por eles, vivendo juntos o agora.

“Eu me encontrei na docência quando percebi que podia reviver, todos os dias, a criança que eu fui.” (Briane Guterres)

6. O que você aprendeu com seus estudantes e que talvez nenhum curso de formação tenha lhe ensinado?

Aprendi a lembrar e reencontrar a criança que eu fui. Só quem vive a escola entende isso. Estar com os estudantes é um exercício constante de revisitar a infância, e nenhum curso ensina isso.

Posso ter todas as especializações do mundo, fazer formações semanais, voltar à universidade, mas nada se compara ao que aprendo todos os dias com as crianças. São elas que despertam em mim o encantamento, a curiosidade, a alegria de olhar o mundo como se fosse a primeira vez.

Recentemente, uma aluna chegou toda orgulhosa para me mostrar duas provas em que havia ido muito bem. Naquele instante, foi como se eu voltasse a ser a menina que corria para casa para contar uma conquista. É isso que a sala de aula faz conosco, nos devolve o espanto, o brilho, a vontade de aprender sempre. E é isso que só os estudantes conseguem nos ensinar.

7. Os professores vivem sob muitas pressões: burocracias, resultados, desafios emocionais. O que a ajuda a não se perder do essencial?

O que me mantém firme é estar com as crianças e com meus colegas. A troca entre professores é essencial. As formações, o diálogo, o apoio mútuo; tudo isso ajuda a colocar os pés no chão.

Sim, há burocracias, há papeladas, há sistemas para preencher. Mas eu aprendi a olhar para isso de outro modo: são instrumentos que também nos protegem e organizam o nosso trabalho. Quando sei exatamente o que estou fazendo e por que, posso mostrar com clareza meu papel, minhas intenções pedagógicas, o que quero desenvolver com os estudantes.

A escola onde atuo, a EMEF Vânia Mincarone, tem algo que considero fundamental: o Projeto Vida. Ele oferece aulas de ioga para toda a comunidade: estudantes, famílias, professores e funcionários. É um momento de pausa, de reconexão, de reencontro consigo mesmo.

Acho que o essencial está nisso: saber quem eu sou como professora, estar presente no momento, viver um dia de cada vez. A educação, assim como nós, é movimento; ela não é rígida, é viva, flexível, feita de trocas humanas. É nesse equilíbrio, que muda e se refaz, que encontro o meu centro.

8. Se você pudesse mudar uma única coisa na educação brasileira hoje, o que seria, e por quê?

Eu investiria na escola de tempo integral. Mas uma escola integral de verdade, que olhasse para o desenvolvimento global das crianças. Não apenas um espaço em que o estudante permanecesse por mais horas, e sim um lugar que ampliasse suas possibilidades de aprender e descobrir quem é.

O turno regular deve garantir o domínio das áreas acadêmicas: leitura, escrita, lógica, interpretação. Mas o contraturno precisa abrir espaço para o corpo, o gesto, o esporte, a arte, o instrumento musical, aquilo que desperta o interesse e o talento de cada um.

Muitas vezes, o estudante que não se destaca nos cadernos brilha em outro campo. E a escola precisa enxergar isso, valorizando o que ele tem de melhor. Essa seria a mudança: uma educação integral de qualidade, que combinasse aprendizado e experiência, conhecimento e expressão, razão e movimento.

Claro, isso exigiria investimento em infraestrutura e em profissionais da educação. Mas acredito que seja o caminho. A escola precisa voltar a ser esse espaço completo, onde o estudante aprenda, crie e se reconheça.

9. Por fim, o que o Dia do Professor significa pra você? Que mensagem gostaria de deixar aos colegas que seguem acreditando na escola?

Pra mim, o Dia do Professor é um dia de celebração, mas também de reflexão. É o momento de lembrar a força que temos e o papel que ocupamos na sociedade: o de formar todas as outras profissões.

A docência é uma escolha diária. Entre desafios, burocracias e incertezas, seguimos porque acreditamos no que fazemos. Precisamos nos apoderar novamente desse lugar, reconhecer o nosso valor e ter orgulho de dizer: sou professora, sou professor.

Gosto de pensar que esse dia é uma pausa para nos reconectarmos com o motivo que nos trouxe até aqui. É quando a gente se olha com honestidade, se revê e se reconhece como parte de algo maior; a construção de um futuro possível.

E, se pudesse deixar uma mensagem aos colegas, seria com as palavras do escritor Daniel Munduruku: “Viva o tempo, não viva as horas. Só há um tempo: o agora. Quem vive o seu tempo faz história.”

“Quem vive o seu tempo faz História.” (Briane Guterres)

Que sigamos vivendo o nosso tempo, fazendo a nossa História, com coragem, presença e encantamento.