O futuro tem sotaque piauiense

Por Karen Cardial

A decisão de transformar a Inteligência Artificial em disciplina curricular não nasceu como experiência isolada, mas como política pública de longo alcance. No Piauí, essa escolha reposiciona a escola diante das transformações tecnológicas e traz o estado para o centro do debate educacional mundial.

Em 2024, o estado passou a integrar um seleto grupo de territórios que implementaram a disciplina de Inteligência Artificial na Educação Básica. A Unesco reconheceu o Piauí como o primeiro território das Américas a adotar essa política, colocando o Brasil ao lado da China e da Coreia do Sul como referência global. “A IA vem movimentando diversos aspectos das nossas vidas. A gente não pode esperar, o tempo das transformações agora é mais curto”, afirma Rodrigo Torres, superintendente executivo da Secretaria de Estado da Educação do Piauí (Seduc-PI).

“A IA vem movimentando diversos aspectos das nossas vidas. A gente não pode esperar, o tempo das transformações agora é mais curto.” (Rodrigo Torres)

Mais de 120 mil estudantes da rede estadual já estão matriculados na disciplina, obrigatória do 9º ano do Ensino Fundamental ao Ensino Médio, em mais de 500 escolas. A formação docente foi estruturada com apoio da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Instituto Federal Farroupilha (IFFar), além de infraestrutura tecnológica compartilhada com o Google.

A proposta não se restringe às salas de aula tradicionais. Em paralelo, os estudantes acessam cursos técnicos em desenvolvimento de sistemas com ênfase em IA, programação de jogos digitais e marketing digital. “O ensino de Inteligência Artificial é uma ferramenta que amplia horizontes e prepara nossos estudantes para qualquer área que desejem seguir”, observa Torres.

“O ensino de Inteligência Artificial é uma ferramenta que amplia horizontes e prepara nossos estudantes para qualquer área que desejem seguir.” (Rodrigo Torres)

O impacto já pode ser visto em experiências locais. No CETI Paulo Freire (Centro Estadual de Tempo Integral Paulo Freire), em Guaribas, município do sudoeste piauiense, alunos criaram um aplicativo que auxilia agricultores a registrar sementes e prever colheitas. A iniciativa nasceu da integração entre biologia, tecnologia e projeto de vida, mostrando como a disciplina pode se conectar diretamente às demandas da comunidade.

Em Guaribas, estudantes criaram um aplicativo para agricultores registrarem sementes e preverem colheitas, unindo biologia, tecnologia e projeto de vida.

O modelo do Piauí também foi tema do Seminário Nacional de IA na Educação Básica, promovido pelo MEC em parceria com a Unesco e o Cetic.br (Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação). “Não tem como resolver um aspecto para esperar e resolver o outro. A gente tem que fazer tudo ao mesmo tempo”, declara Torres, ao destacar a simultaneidade entre o letramento tradicional e a formação digital.

Os resultados já aparecem em números expressivos. Em 2025, 1.010 estudantes piauienses avançaram até a fase semifinal da ONIA (Olimpíada Nacional de Inteligência Artificial), etapa que antecipa os finalistas em uma disputa nacional com milhares de participantes. Em seguida, 11 estudantes chegaram à fase final, a etapa mais competitiva da Olimpíada Nacional, reservada aos alunos com melhor desempenho do país. Essa presença expressiva reforça o alcance da política pública de IA no Piauí e a capacidade de formar talentos com condições de disputar em pé de igualdade com os melhores do Brasil.

O estado investe também na plataforma SoberanIA, a primeira inteligência artificial pública, em língua portuguesa, desenvolvida por um estado brasileiro. Lançada em 25 de junho de 2025 e criada para respeitar a diversidade cultural e linguística do país, incluindo sotaques e vocabulários regionais, a ferramenta busca fortalecer a soberania digital e aprimorar serviços públicos. De acordo com informações oficiais do governo do Piauí, a SoberanIA opera em um supercomputador de alto desempenho, com capacidade centenas de vezes maior que a de uma máquina comum, o que permite processar grandes volumes de informação em português com rapidez e precisão. Sua base, chamada Dataset Jabuticaba, reúne mais de 130 bilhões de unidades de texto em português, desde obras literárias até documentos jurídicos, tornando-se a maior coletânea do gênero já criada no país.

Apesar dos avanços e da visibilidade nacional, a experiência do Piauí com a disciplina de Inteligência Artificial na Educação Básica enfrenta pontos que exigem amadurecimento, desde a avaliação da aprendizagem até o aprofundamento de debates éticos sobre o uso da tecnologia em sala de aula. “Como começar a usar a IA se muitos estudantes ainda precisam desenvolver habilidades básicas, como interpretação de texto, operações matemáticas e diferentes tipos de letramento?”, questiona Torres. Para ele, o tempo integral é o que permite enfrentar esse paradoxo, não apenas com mais horas de aula, mas com um currículo moderno, conectado à realidade do mundo atual.

Avaliar a aprendizagem e aprofundar debates éticos são desafios que permanecem no horizonte da disciplina de IA.

“O Piauí tem diante de si a oportunidade de preparar uma geração inteira para dialogar com as transformações que já estão em curso”, afirma Torres. “É a possibilidade de reposicionar a escola como espaço de formação crítica e cidadã”, finaliza.